Uma Inversão
Falar de desmaterialização como sendo um dos traços característicos da arte no fim do século XX é evocar, de modo concomitante, ora uma promessa não cumprida ora uma impropriedade histórica. Nascida logo após a Segunda Guerra Mundial, a promessa foi a do projeto revolucionário da neovanguarda eurocêntrica, isto é, uma utopia que atingiu seu estado de decomposição no fim da década de 60. A impropriedade, por sua vez, assinala a atual condição da arte e o seu impasse em uma tardia sociedade capitalista. Em ambos os casos, a negatividade do prefixo `des´ implica um absurdo.

Em 1968, a ativista e crítica norte-americana Lucy R. Lippard cunhou o termo desmaterialização para descrever o caráter `obsoleto progressivo´ da arte-objeto(1). De acordo com Lippard, esse processo implicava a transformação da arte em simples idéias ou ações espontâneas por meio das quais prometia `escapar´ para sempre da chamada `síndrome da moldura-e-pedestal´ num esforço para se reintegrar à vida diária. Desprovida de atributos como os da originalidade, da permanência, ou ainda da atração decorativa, assim como despida do seu status de mercadoria, a arte - vista por meio da lente otimista de meados da década de 60 - ameaçava se transformar numa força libertadora. Na verdade, esse processo nunca ocorreu. Escassos cinco anos depois de ter escrito seu celebrado texto, a autora reconheceu que a raison d´être da desmaterialização na arte tinha fracassado. A partir de então, a arte conceitual ou de ação foi totalmente incorporada ao mainstream artístico. O que no início entendeu-se como sendo o caráter obsoleto da arte-objeto converteu-se, de fato, na transformação de idéias e ações em artigos de consumo(2). Hoje, quase três décadas depois do seu original ensaio sobre a desmaterialização, Lippard ainda reconhece que "a escapatória foi provisional". A arte desmaterializada não só tinha sido "recapturada e enviada de volta à sua cela branca", na galeria ou no museu, mas também a arte canônica tinha se exaurido numa grande variedade de formas e revivals estilísticos (neo-expressionismo, transvanguarda, neoconceitualismo etc.(3). Como resultado, o que se observa hoje é uma enxurrada de maneirismos de fin-de-siècle.Apesar desse fracasso, existem duas formas opostas em que o mito da utopia artística, embora veiculado de modo deturpado pela desmaterialização da década de 60, persiste ainda hoje. A primeira diz respeito às estratégias que invadiram a arte das comunidades marginais e subordinadas aos centros de poder, táticas associadas no começo aos movimentos das artes conceitual e minimalista. A segunda refere-se à sua institucionalização nas mãos dos interesses hegemônicos do mundo da arte. A tensão gerada pela oposição das duas tendências enfatiza a incapacidade desse legado de produzir verdadeiras alternativas para o impasse da arte atual.

A geração da década de 60 tentou dissolver a arte em simples idéias ou propostas, despindo-a, de uma vez por todas, de sua aura de verdade absoluta. Confrontado com seu potencial obsoleto, o objeto artístico não mais apelou a uma hierarquia de essências incontestáveis. Muito pelo contrário, o local da experiência estética foi-se transferindo do próprio objeto para sua capacidade de gerar significados para públicos específicos. Sob a luz das tendências amplamente difundidas na atualidade, da globalização ao multiculturalismo, essa significação só é válida quando legitimada pelos valores de um grupo cultural específico. Esse fato permitiu que artistas, ligados anteriormente a comunidades marginais, pudessem se engajar àqueles discursos artísticos - associados no início ao conceito de desmaterialização (conceitual, minimalista ou de performance) - em termos próprios aos propósitos individuais e do grupo. Nas mãos desses artistas, a herança da arte desmaterializada se transformou numa maneira de ampliar e refletir sobre as estratégias próprias da arte relativas à sua intervenção social e à sua sobrevivência. Isso permitiu pôr à margem as atitudes de folclorismo vernáculo, o puído discurso do nacionalismo, além das `identidades´ estereotipadas promovidas pelos mercados interno e externo, ao mesmo tempo em que eram levantados os itens em destaque para suas respectivas culturas ou comunidades. Nesse ponto, a arte desmaterializada continua sendo, até hoje, uma infindável variedade de práticas, de linguagens e situações que estenderam o legado estratégico dos movimentos da década de 60 até os domínios da política e da cultura.

Em franca oposição a esse tipo de reaproveitamento funcional da arte desmaterializada, acha-se a sua transformação em `paradigma global´ arquitetado pelos interesses metropolitanos do mundo da arte. De fato, e isso é incontestável para qualquer um que esteja por dentro dos circuitos artísticos internacionais, sob a forma de instalações, de objetos ambientais, esculturais ou de vídeo-`situações´, a arte desmaterializada converteu-se numa lingua franca oficial. Para todos aqueles artistas pertencentes às comunidades marginais ou mesmo emergentes, a institucionalização desse legado - do qual eles mesmos tinham-se apropriado quando o pesquisaram no começo - prometia agir como um salvo-conduto para transitar na comunidade global artística. Mas não foi bem assim. Se nos detivermos para observá-la em profundidade, a tendência que conduz à homogeneização do discurso artístico em destaque no cenário internacional traz à tona uma comunidade autocentrada e perfeitamente padronizada. Comunidade essa cujas metas não correspondem necessariamente àquelas das sociedades não-centrais, como as representadas pela América Latina, em toda a sua variedade étnica e cultural.

Mesmo cientes da tensão produzida pela disparidade de objetivos, muitos artistas latino-americanos aceitaram o desafio imposto pela arte desmaterializada, mas em termos próprios e sob sua perspectiva particular. Isso torna-se evidente particularmente no grupo que expõe na Universalis. Em cada um dos casos, as suas obras, longe de serem consideradas apêndices derivativos dos paradigmas oficiais da arte mundial, estão preocupadas em sublinhar, no âmago, aquela `diferença´ que articula suas diretrizes locais face à comunidade global. Para eles, a rota para uma prática independente da arte traçou-se por meio da apropriação e inversão do conceito original da arte desmaterializada. Isso foi possível, strictu sensu, porque o mito da desmaterialização nunca teve um seguimento acurado na América Latina. O que aconteceu foi, longe disso, uma re-materialização da arte. Como argumentei anteriormente, a necessidade de contornar ou mesmo evadir a censura em países sob a mazela das ditaduras militares, ao mesmo tempo de garantir circuitos viáveis para a exibição de seus trabalhos, incentivou os artistas desde cedo a se engajarem em formas ideológicas de um conceitualismo baseado no objeto(4). Essa forma de arte conceitual, alicerçada no uso de objetos previamente descontextualizados para transmitir novos significados, nasceu no nosso continente como um feito duplamente crítico: contra o sistema político local e contra os circuitos institucionalizados pela hegemonia do mainstream artístico.

Universalis
Os artistas convidados a integrar a seleção latino-americana da Universalis destacam-se pela sua vivência crítica da arte desmaterializada. Por um lado, o uso de materiais precários e estratégias antiestéticas - o que vem reforçar formas não-tradicionais de produzir significado - faz a arte girar em torno da dissolução de qualidades tais como o preciosismo ou o decorativo, ambas associadas à tradição artística dirigida ao mercado. Por outro lado, o uso dos processos conceitual e perceptivo privilegiado pelos artistas não implica esquecer os objetos em si como transmissores de significação. Sob os parâmetros de Duchamp, todas as obras desses artistas latino-americanos escolhidos para a Universalis podem ser caracterizadas pela ênfase em re-significar os materiais, aproveitando o uso de elementos banais extraídos ou reciclados da fonte de conhecimentos da experiência contemporânea. Em cada um desses casos, a `coisa´ ou a `matéria´ encontra-se no centro da produção artística; isto é, no âmago de uma proposta assaz lúcida que se pode chamar de poética da precariedade. Por conseguinte, em vez de subtrair peso do mundo, esse grupo de artistas está acrescentando uma nova gravidade: o peso da ponderação do processo artístico per se.

Esse tipo de enfoque da arte responde às vastas limitações do nosso contexto latino-americano. Rejeitando de vez qualquer intenção de se praticar a `antimatéria´ como experiência estética em si própria, a re-materialização surge como um degrau sólido para a arte atual face à realidade social concreta. É, sem dúvida, uma engenhosa resposta diante da incerteza e do confinamento, condições que abalam a arte contemporânea na maioria dos nossos países. Tais restrições concretas vão da falta de apoio oficial e institucional até a escassez ou ainda a inacessibilidade dos materiais. Ricardo Brey, um dos expoentes do grupo, assinala que " ... [em Cuba] usamos materiais pobres por motivos diferentes [...], porque [lá] nunca se acham coisas novas [...], tudo está usado ou quebrado. Assim como em muitos cantos do mundo"(5). Logo, a estratégia de selecionar cuidadosamente materiais não-artísticos, munindo-os de uma carga semântica dentro da matriz conceitual ou da instalação, estabelece uma nova função. Mesmo que a intenção seja a de evitar obras que possam ser diretamente vinculadas a qualquer noção preconcebida de identidade cultural, o resultado dessa tática enfatiza a diferença real que coloca o local da América Latina em toda a complexidade do seu sincretismo. A re-materialização pode, então, ser entendida como o desejo do artista em inovar a partir de materiais banais e gastos que motivam a sua imaginação. No fim das contas, seria constatar a indiscutível capacidade do contexto do make it new, como Duchamp costumava dizer.

A resposta de Luis Camnitzer ao tema da `desmaterialização´ proposto pela Bienal é uma impertinente queixa sobre a condição atual da arte. Mesmo não sendo intencional, a obra pode ser lida como um endosso às conclusões de Lippard: ou seja, aquela frustrada `tentativa de escapatória´ e sua volta à `cela branca´ do mundo artístico institucionalizado. Em meados da década de 60, ele foi um dos primeiros artistas latino-americanos a assumir o compromisso inerente à arte desmaterializada. Dessa forma, esse artista uruguaio preocupou-se em levar adiante, na prática da sua obra, a utopia de uma arte inseparável da vida. As lutas e as contradições desse tipo de empreendimento não são apenas muito familiares para ele; são elas que também ministram o fundamento da sua fustigante crítica.

O seu Projeto Universalis demonstra a preferência de Camnitzer em arranjar ready-mades e textos escritos sob uma matriz conceitual. Essa, quando plenamente desenvolvida, toma a forma de uma instalação. Contudo, se grande parte das suas instalações anteriores levava em conta o ponto de vista do espectador face a campos parciais ou segmentados produzidos pelos deslocamentos verbais e visuais, o Projeto Universalis age sob o princípio da simultaneidade. O artista criou um espaço unificado que se comunica com o espectador do mesmo jeito bidimensional de uma fotografia ou de uma máquina instantânea. O caráter imediato da peça é assinalado de modo dramático pelo fato de ser inacessível ao espectador. Somente ao se aproximar de uma fresta estreita, ao longo da parede do escuro passadiço, o espectador consegue perceber quais os conteúdos do espaço instalado. Entre outros, uma cama fantástica de vidro embutida na parede interna na diagonal, uma lâmpada amarela pendurada, um espelho, uma janela que substitui o cristal pelo astro-turfe, exemplares plastificados da revista Casa e Jardim, bolas flutuantes de cabelo e de sujeira, um baralho com cartas dispostas, uma garrafa... etc. Esses objetos foram arranjados e espalhados dentro daquele espaço que lembra `a cela branca´, onde ainda três textos escritos sobre pranchas de vidro escuro sugerem possíveis leituras da obra.

Para esse uruguaio radicado em Nova York, a idéia do artista que vira prisioneiro do seu trabalho (uma abstração inquestionável) deve ser conduzida por meio de metáforas concretas. Nesse sentido, o segundo texto da instalação merece particular atenção. Trata-se da sua própria concepção sobre como "as coisas levam o artista/prisioneiro a se engajar firmemente na sua criação, a um grau tal que ela o possui e o subordina. Fechado no cárcere dentro do cárcere, ele mistura a sua própria angústia com uma possível liberdade que, no fundo, é inatingível"(6). Camnitzer parece deixar implícito que ele é um prisioneiro impotente das suas ilusões, de sua alucinação. Em vez de estarem sob controle, as coisas parecem ter tomado conta dele. Sob o peso dessa pressão, portanto, Camnitzer se fixa na re-materialização para transmitir a causticidade do significado subjacente da sua instalação. O efeito geral da peça fica na dependência de objetos cujas funções ou significados foram obstruídos: uma lâmpada com pó amarelo simulando a luz; revistas plastificadas ilegíveis; uma garrafa onde o líquido virou chumbo etc. A peça impede a mediação. Sua rejeição em encenar sofisticados jogos visuais ou textuais, comparada a trabalhos anteriores, sugere uma experiência até as últimas conseqüências onde o cinismo cede antes passagem a uma forma ativa de `anti-otimismo´ e depois a um niilismo. Ele transmite sua mensagem de tal maneira que não é possível a abstração em decorrência do estado de auto-satisfação no qual o artista mergulha alucinadamente. Trancado de novo em sua cela, o artista continua a crer na sua destreza para transformar coisas; mesmo que, no final, seja ele o transformado pelo bizarro da situação.

Com um espaço fabular, Gonzalo Díaz, o artista chileno, propõe o fim de todas as utopias artísticas ou políticas. No começo da sua carreira em Santiago, Díaz testemunhou a repressão do regime de Pinochet e a restauração da democracia. Engajou-se desde cedo, como Camnitzer, naquele conceitualismo ideológico que lutava para superar as limitações desse discurso artístico em duas vertentes: a que superava a tautologia e a que dominava o processo de autocrítica. Em ditaduras militares como a do Chile (o mesmo valendo para as do Uruguai, Argentina e Brasil), a necessidade de ir além do concreto e penetrar no âmbito puro da abstração era inevitável. Nesse contexto de repressão política, as práticas conceituais baseadas no objeto ficavam submetidas a um alto grau de tensão. Sendo assim, para artistas como Díaz, a re-materialização agia em níveis diferentes: ora onde palavras ou objetos diversos repetem a mesma velha história do tempo ora onde o espaço ecoa na mesmice da significação.

Nas suas Fábulas Amorais da Província, Díaz apresenta uma tênue mis-en- scène, criando personagens feitos de palavras, no sentido literal e também metafórico. Além das tabelas de álgebra penduradas no teto, estrategicamente localizadas sobre pequenas estantes iluminadas de modo teatral com tripés de luz de halogênio, Díaz utiliza figuras de chumbo em forma de animais. Logo, o discurso teatralizado sugere, de maneira concomitante, ora uma fábula zoológica consistente como o chumbo ora uma confabulação matemática. De fato, uma mistura inédita. O conjunto mostra simplesmente a força do objeto, sua capacidade energética para gerar os discursos visual e textual valendo-se de três miniaturas de chumbo - uma raposa, um pato e um galo. Díaz descobriu as miniaturas num bazar do bairro antigo de Santiago. O objetivo básico desse trabalho é o uso de objetos inanimados para dar vida a um discurso que permanece, de modo geral, latente. O fato de produzir sua obra visual a partir de textos, palavras, caracteres e números - em vez de cores, imagens ou qualquer outro procedimento pictórico - é um aspecto fundamental do trabalho de Díaz. Para ele, a relação pode ser estabelecida entre o verso e a imagem. Nas suas próprias palavras: "... [há aqui] um exercício de rima destacando a diferença entre a ação repetida e circular das palavras e a tranqüilidade material das figurinhas de chumbo"(7). O local de figurinhas e códigos na obra implica o deslocamento da pura noção de desmaterialização. Díaz - um povoador na periferia excêntrica da arte contemporânea - alude à desmaterialização dos egocêntricos grand récits da cultura do Ocidente. No seu fazer, o tempo e o espaço possuem uma outra dimensão onde o caráter espetacular do centro é negado.
José Antonio Hernández-Diez engaja-se na dimensão tecnológica do vídeo, expondo assim a vulnerabilidade do mundo de imagens que cria. O artista pertence a uma geração de jovens venezuelanos cujo contato com o mundo foi amplamente moldado pelo monitor da televisão. Não deve surpreender, portanto, que o elemento central do seu trabalho gire em torno da vídeo-produção, destacando a presença dos monitores de TV como `objetos´ ou `esculturas´ dentro do espaço da instalação. Nesse seu Projeto Universalis, Hernández-Diez apresenta seus monitores acondicionados em embalagens termoplásticas que se assemelham a animais. A idéia elementar do projeto é, para ele, a de "produzir moldes de diversos animais ou formas elaboradas com cabelo sintético para funcionarem como símiles, imprimindo-se neles um caráter de objeto tecnológico, mas, ao mesmo tempo, comercial". E, ao descrever seu emprego do vídeo sob a técnica do termoplástico, acrescenta: "O vídeo parece uma alusão à amostragem de um produto X que já não é exibido como comida ou objeto utilitário, mas como alguma coisa a mais que é impossível ou difícil de obter"(8). Em relação a esse olhar crítico, a arte pode ser vista como um território prático de tensões e contradições onde as pessoas se influenciam e se politizam. Na arte de Hernández-Diez, o uso de animais sugere que, ao sermos confrontados com a falência da utopia, talvez a coisa mais apropriada que o artista pode fazer é reduzir nossa condição humana à sua própria essência: o animal político. O trabalho de Diez insinua-se na linha tênue entre o que é humano e o que é animal na humanidade. De acordo com o seu testemunho: "No momento atual da minha obra, pode-se apreciar, evidente e fisicamente, uma aparência desleixada pelo uso de `materiais pobres´ em oposição à alta tecnologia dos dispositivos usados pelo vídeo [...]. Essa alteração no trabalho reflete as profundas mudanças ocorridas na Venezuela, mergulhada numa grave crise econômica"(9).

Para artistas como Duchamp, a arte era alguma coisa além da simples morfologia; era uma função ou operação mental que transcendia a aparência das coisas com o intuito de atingir a essência do problema. De modo semelhante, a arte, para Hernández-Diez, supera o imediato no mundo das imagens artificiais do vídeo para revelar uma verdade mais profunda. Nesse sentido, no Projeto Universalis de Hernández-Diez há uma outra implicação importante a ser enfatizada: "a de se deter o tempo, de prendê-lo"(10). Para os artistas que transitam nessa corrente, a importância da imagem deve ser reforçada como fator essencial da lógica simbólica, seja ela coletiva ou individual. A idéia de um animal detido no tempo ou no espaço é aproveitada por ele para instigar o espectador sobre o questionamento do significado e da realidade de ambos.

Já a obra de Ricardo Brey oscila de modo consistente entre um sólido alicerce de elementos concretos, freqüentemente tomados da realidade que o cerca, e a tão provocadora profundeza do significado maior dessas `coisas´. Em ambos os casos, existe um jogo dialético e tenso para determinar quando `a matéria´ deve ser eliminada ou não. Valendo-se do lixo ou da sucata, Brey faz a encenação do seu trabalho em instalações que sugerem a incorporação física do ermo mental. Sua exibição teatralizada de matéria inanimada, ou mesmo descartável - pneus, poeira, farrapos, colchões etc. -, fala da realidade desoladora que é a frustração do artista diante das condições do nosso mundo. Além do mais, nos espaços construídos por Brey paira vida mesmo tendo sido preenchidos com matéria inerte. Os silenciosos ventiladores que não se mexem produzem uma respiração, uma leve brisa de poeira que bate sobre a matéria fazendo-a voltar à vida. Apelando mais aos sentidos do que ao olhar, a peça envolve o espectador pelo som ou pelo toque, propondo, assim, uma genuína experiência estética.

Como as instalações de Camnitzer e Diez, a obra de Brey opera sob o princípio duchampiano do ready-made descontextualizado. Além disso, nas suas instalações o objeto jamais aparece como uma totalidade. Muito pelo contrário: o objeto não é senão um fragmento dessa totalidade que só atinge sua inteireza com uma série de seqüências formais onde ritmo e significado são essenciais(11). Nesse sentido, o que Brey faz é `redimir´ o objeto retirando-o da sua inutilidade ou morte ao mesmo tempo em que descobre o seu potencial espiritual. "Na minha opinião", ele declara, "todos os materiais são capazes de transmitir uma qualidade espiritual. Os objetos usados anteriormente possuem em si próprios essa qualidade devido à pátina dos anos"(12). Em meio às atuais tendências de globalização, e o seu nivelamento e uniformização implícitos na arte, a atitude iconoclasta de Brey funciona quase de modo anacrônico. Ao rejeitar os paradigmas institucionalizados, o artista almeja a conservação do seu discurso assaz pessoal; sem dúvida uma subjetividade discursiva por meio da qual ele introduz um certo tipo de experiência transcendental no espectador. Aliás, uma experiência que hoje é negada rotundamente pela nossa condição pós-moderna. Como resultado, para ele o inefável é uma realidade.

Quanto à obra Una Cosa es una Cosa es una Cosa, de María Teresa Hincapié, o material ou a coisa, o objeto em si, tem maior importância do que o objetivo da peça encenada. A artista manipula `seus objetos´ de maneira tal que provoca uma percepção concomitante, ora de materialização ora de desmaterialização. É assim que ela vai gerando um espaço vivo dentro da instalação performática, que se refere, de modo simultâneo, ao seu cotidiano e à carga de energia cósmica que a rodeia. Em cada um dos casos, o espaço criado por ela é único; ou seja, trata-se de uma extensão ativa da sua própria energia vital mais do que um foro passivo para encenar sua elocução dramática e teatral. Em Una Cosa es una Cosa es una Cosa, onde o diálogo entre o seu corpo e os seus objetos pessoais é repetido de maneira inesgotável, a ação humana é a determinante das regras artísticas e das seqüências lógicas. Para esta artista colombiana, a arte não é nem teatro nem instalação, mas seu processo infindável. A arte, portanto, apresenta-se na sua forma completamente tautológica: por um lado, sendo auto-referente nos seus círculos viciosos; por outro, uma função em si própria infinitamente repetida.

María Teresa traz à cena todos os seus pertences - o colchão, as roupas, as panelas da cozinha, pratos e talheres, maquiagem, pentes e até alfinetes - e os instala no espaço. Em seguida, ela começa a organizá-los e a classificá-los ao longo de quase oito horas a fio. Nesse tipo de aproximação com os objetos, cada um deles ressurge com um caráter ou gesto novo. É assim que ela individualiza cuidadosamente sua energia, impregnando-os com uma aura de consciência exaltadora. Cada agulha, cada cebola ou prato, cada peça de roupa recebe seu espaço particular de vibrações no meio do labirinto de possibilidades que fica sendo constantemente mudado pelas obsessivas alterações da artista. Recentemente, Hincapié declarou: "... [Amiúde reitero] a necessidade não da obra, mas de se pôr em evidência o seu processo: o corpo, o tempo, o espaço e a ação. Esses são motivos demais para eu confrontar meu trabalho. Una cosa es una Cosa... é o clímax de todo esse processo"(13). O que fica, enfim, é um `campo de energia´ animando cada um dos objetos introduzidos nele, tirando-os do anonimato para reintegrá-los na escala do valor pessoal.

Coda
Mesmo sendo difícil estabelecer com clareza a especificidade do grupo de obras que formam a seleção latino-americana da Universalis, nosso conjunto partilha uma irreverente atitude face ao panorama institucionalizado da arte hoje. Pelo fato de o grupo insistir na `re-significação´ do objeto, esses artistas estariam reconhecendo a sua própria impotência face ao statu quo. Porém, com o uso de estratégias conceituais, de objetos e de materiais precários, eles estariam tentando resgatar a arte da sua esfera ultracomercial para reinseri-la no âmbito social. Seu teor irreverente existe só na aparência; principalmente na recusa em ilustrar suas `narrativas de identidade´ ou mesmo em funcionar dentro do espaço mítico da cultura. Eles assumem isso apesar do risco de seus trabalhos serem lidos ainda sob a lente das noções preconcebidas - preconceitos esses nascidos da `identidade´ previamente estabelecida para cada um deles. De acordo com as diversas manifestações desse grupo de artistas, a única maneira de uma arte autêntica sobreviver é por meio da autocrítica. Em meio à absurda morbidez e ao otimismo insignificante da arte hegemônica, esse tipo de atitude - que bem pode se chamar de ingênua ou de exageradamente crítica no seu intento de gerar novos significados - pode ser visto como o último vestígio do pessimismo vital.


1.LIPPARD, Lucy R. & CHANDLER, John. "The dematerialization of art", Art International, vol. XII, fevereiro, 1968, pp. 31-36: 31.
2. ___ (org.). Posfácio a Six years: The dematerialization of the art object from 1966 to 1972, New York, Praeger Publishers Inc., 1973, pp. 263-264.
3. ___."Escape attempts", in Ann Goldstein and Anne Rorimer, Reconsidering the object of art: 1965-1975, Los Angeles, The Museum of Contemporary Art, 1995, pp. 16-38.
4. RAMÍREZ, Marí Carmen. "Blue-print circuits: Conceptual art and politcs", in Latin american art of the twentieth century, New York, The Museum of Modern Art, 1992, pp. 156-167.
5. BREY, Ricardo. "Eem adem die vormen beweegt" (Um alento movendo formas), entrevistado por Dirk Pültau, GE, Gent, 22 de janeiro de 1993.
6. CAMNITZER, Luis. "Depoimneto do artista para Universalis", 23a Bienal Internacional de São Paulo.
7. DÍAZ, Gonzalo. "Prolegômenos: projeto para a exposição Universalis", 23a Bienal Internacional de São Paulo, Santiago, fevereiro de 1996.
8. HERNÁNDEZ-DIEZ, José Antonio. Correspondência com a curadora (MCR), 22 de março de 1996.
9. ____. "Projeto Bienal de São Paulo: resposta aos pontos de leitura da obra", Caracas, abril de 1996.
10. ___. Correnspondência com a curadora (MCR), 22 de março de 1996.
11. O artista declara: "A minha obra existe em fragmentos, nunca em totalidade. Nenhuma forma é completa; nenhum corpo está fechado. O sentimento de destruição liga-se à continuidade". Ricardo Brey, "Eem adem die", 22 de janeiro de 1993.
12. BREY, Ricardo. "Depoimento do artista para Universalis", 23a Bienal Internacional de São Paulo, 1996.
13. HINCAPIÉ, María Teresa. "Depoimento da artista para Universalis", 23a Bienal Internacional de São Paulo, 1996.

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