A XXIII Bienal Internacional de São Paulo se orgulha de exibir 18 mostras que participam do tema escolhido pela curadoria: a desmaterialização da arte no final do milênio. Os mestres da arte moderna estão presentes. Não medimos esforços para trazê-los. Cada exposição vem representada por uma instituição e por um curador que detêm autoridade acerca do artista. O todo forma um percurso que permite a iniciação do público por obras originais. Os trabalhos de Goya que abrem cronologicamente a aventura da desmaterialização através dos tempos pertencem às primeiras edições de seus álbuns.
A última vez que Munch, Picasso e Klee se apresentaram com obras únicas e de tal importância no Brasil, constituindo um conjunto, ocorreu na II Bienal (1953/54), em virtude da participação do evento nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo. Pedro Figari, Wilfredo Lam, Louise Bourgeois, Gego, Tomie Ohtake, Rubem Valentin, Mestre Didi, Svend Wiig Hansen, Andy Warhol, Cy Twombly, Arnulf Rainer, Qiu Shi-Hua, Anish Kapoor e Jean-Michel Basquiat formam justamente com os já mencionados o maior acontecimento artístico ocorrido no Brasil e na América Latina.
Esse fato assinala o amadurecimento da insituição e dos órgãos públicos e privados que a respaldaram. Torna-se imperioso citar a colaboração do Ministério da Cultura que, prevendo as dificuldades de atingir a meta almejada, subsidiou os passos iniciais para conquistar o direito de exibir o extraordinário acervo. O Estado e o Município acompanharam a União. A iniciativa privada patrocinou os artistas convidados.
A educação estética de uma comunidade não se pode processar através de reproduções de obras de arte, por melhores que sejam, do conhecimento de segunda-mão. A obra exige presença.
A Fundação Bienal de São Paulo não se atém ao imediato. Antevê para o ano 2000 a realização de mostra que homenageará o V Centenário do descobrimento com obras brasileiras que irão desde o período pré-cabralino até aos tempos atuais, além de projetar o encontro milenar dos países da XXV Bienal. Para tanto, o espaço museológico alojado no terceiro andar do pavilhão Cicillo Matarazzo ampliado de três para quatro mil metros quadrados permanecerá ativo tempo integral. Já somos candidatos a receber as grandes mostras itinerantes, ampliando as possibilidades do circuito artístico internacional.



Há trinta anos, a utopia atingiu um patamar raras vezes alcançado no mundo artístico. Testemunha-o o próprio título do livro da ativista Lucy Lippard: Six years: The dematerialization of the art object (1966-72). Ocorreu a sensação de que o estado poético é mais importante do que a poesia, que a arte é maior do que a obra. Quem se exprimiu através de uma tela ou de uma massa correu o risco de ser considerado um trapaceiro porque a arte não deveria se contentar com territórios predeterminados. Esse sentimento foi imediatamente envolto por opções ideológicas. O aspecto portátil das obras era interpretado como meio de abastecer a sociedade de consumo, de fazer girar a roda da mais-valia. Tela e pedestal significavam adesão ao mesmo dispositivo que alimentava a guerra do Vietnã, sustentava a ditadura brasileira e universalizava o padrão de vida burguês. Os artistas para denunciar o pacto usaram materiais descartáveis, no mínimo pouco nobres. Essa situação não foi privilégio de um ou dois centros artísticos, nem moda, mas produto de uma insatisfação que tomou conta da civilização.
Nos anos subseqüentes, houve o desencanto. A revolução do modus vivendi não aconteceu no tempo desejado pelos campi universitários. Os museus seguidos pelas galerias se aparelharam para receber instalações, fotografias de eventos, obras efêmeras. Em suma, o establishment ganha a partida. A idéia da arte se rivalizar com o sublime sem obra gorou. O sonho da desmaterialização ficou adiado.

"Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena".

Mais do que um movimento na história cultural, a desmaterialização aponta para a própria essência da arte, permitindo acompanhar sua manifestação ao longo do tempo, tornando contemporâneas diferentes eras. A retomada da pintura depois das experiências dos anos sessenta assinala a vontade de prosseguir a expansão dos sentidos novamente em superfície plana.
A obra de arte dá lugar ao nada, ao vazio, para que um evento novo ocorra. Os mestres, mais do que reduzir o supérfluo, mantêm o espaço em aberto, escancarado. A primeira idéia para o tema da bienal brasileira focalizava a noção do vazio. A dificuldade advinda do pensamento ocidental ter um padrão um tanto positivista afastou o achado, mas não perdeu de vista a questão de fundo. Como traduzir em arte o dito de Lao-tzu: "Do haver saem os Dez mil seres, mas o haver sai do nada. Com pouco, acha-se, com muito, perde-se?" É impossível lidar com a arte sem obra, sem matéria, mas a cifra do imaterial está presente de maneira única e diversa em cada obra-prima. A desmaterialização em arte se declina então em vários modos: a precedência do fantástico sobre o prosaico em Goya, Munch, Louise Bourgeois, Wiig Hansen; a conversão da arte em seus elementos constitutivos — à tela plana do cubismo em Picasso ou à linha, à tonalidade e às cores no artista-pedagogo Paul Klee, ou em Cy Twombly; a transformação do volume em linhas em Gego ou o quase contrário, a respiração da caligrafia no tridimensional em Tomie Ohtake; o diálogo com o divino em Wifredo Lam, Mestre Didi, Rubem Valentim, Arnulf Rainer; a resolução da sociedade contemporânea em marcas por Andy Warhol ou Jean-Michel Basquiat; os índices do nada em Anish Kapoor; a visitação originária ao solo natal em Pedro Figari e Qui Shi-Hua.
A desmaterialização se quer polifônica, não se submete a nenhuma ortodoxia, a nenhuma linha mestra de manuais ou compêndios de história da arte. Visa ter a fluência do gerúndio para explodir no aspecto incisivo do presente: XXIII Bienal Internacional de São Paulo.



Fantasmagoria e Espaço Interior em Goya


As comemorações do nascimento de Goya (1746-1826) propiciam recuar o desenho contemporâneo à sua obra gráfica. Mesmo aquém, pois através de suas gravuras resplandecem a iluminação dos místicos do século de ouro como Zurbarán, que faz de suas naturezas mortas holofotes sobre o mistério da Santíssima Trindade ou através da poesia de São João da Cruz, que desvela os segredos da noite obscura. Goya hoje torna-se um argumento de peso para alguns cineastas voltarem ao filme branco e preto. Transforma os iluminadores Gabriel Figueroa, Léonce-Henry Burel, Gregg Toland em artistas mais apurados que os diretores Luis Buñuel, Robert Bresson ou Orson Welles. A desmaterialização não acontece só pelo primado do fenômeno luminoso, mas pelo desfile de fantasmas interiores, do qual o mais conhecido talvez seja o da gravura dos Caprichos, "O sonho da razão produz monstros", que liga o mestre espanhol aos grandes visionários. O sentimento difuso que irradia dos Disparates, dos Desastres da Guerra evoca o fantasmático mundo infantil revelado por Freud e Melanie Klein. Goya se distancia dos arquétipos da arte de Rabelais ou de Bosch para delinear um eu exposto à labilidade das instâncias intra-psíquicas. A modernidade passa pelo auto-conhecimento. O artista se singulariza pela vontade multimediática, deixando a pintura designar a arte das cortes, do poder eclesiástico ou excepcionalmente revelar os fuzilamentos e celebrar o imenso sabbath da série negra. O homem que experimenta a litogravura na França não está distante do cyber-artista.


Angústia e Nada em Munch


Edvard Munch (1863-1944) apenas dois anos depois da morte de Vincent van Gogh executa O Grito, carregando a energia artística do pintor holandês a um resultado nunca imaginado. Antes de Munch, percorre nos países nórdicos a mesma trilha, qual relâmpago antes do trovão, o filósofo ou poeta do religioso, Soeren Kierkegaard, para quem a angústia é pensada como o pressentimento do nada. O artista norueguês deu forma pictural a esse discernimento. A obra de arte já se desmaterializa quando o tema espelha um estado de espírito, desenha a paisagem interior. Uma curiosa transmigração imagética ocorre com O Grito. O jovem pintor visitando o Museu de Etnografia do Trocadéro em Paris reparou nas múmias andinas chinchorro, cujas faixas não resistiram ao tempo deixando as mandíbulas soltas. Na configuração do transeunte da ponte, Munch reedita esta imagem conectando angústia e finitude sob a mesma expressão. A arte moderna entra em contato com outras civilizações, capta o transtemporal e o trans-espacial, a eternidade no instante. Ao contrário, no tempo cronológico, sucede o domínio de uma civilização com valores centrados na hierarquia definida pela circulação das mercadorias. A quebra do condicionamento deve-se à arte e às ciências. O protagonista do célebre quadro de Munch evoca uma feição aborígene preservada no museu parisiense proveniente de uma civilização arcaica latino-americana. A vinda de um acervo significativo do artista norueguês à Bienal confronta o nomadismo dos flâneurs do século XIX ao espelho indígena da sociedade brasileira.


A Ruptura com a Visão Natural em Picasso


Picasso (1881-1973) propicia o mais formidável encontro artístico, o da revelação da arte africana pelo ocidente. Dele, a tela deduziu sua mais extrema conseqüência, submetendo a ilusão do volume à energia plana. A presença do que não é visível pela visão monocular fixa, a máscara como síntese da visibilidade se inauguram com as Moças de Avignon. O olhar deixa de ser passivo, contemplativo e retoma todas suas prerrogativas, circula em torno do motivo, destrói o eixo único, unifacetado e até então apresentado como "a natureza". Seguir Picasso desde o início é interpelar a história da arte até a eclosão cubista e acompanhar a permanência da insubmissão. A prospecção espacial faz do pintor a referência da arte atual a ponto de fornecer a posição a outros navegantes. O artista amplia as fronteiras da arte erótica, destruindo convenções. Quando empreende o projeto para um monumento a Guillaume Apollinaire, pensa menos no poeta e mais no editor de obras clandestinas procedentes do inferno da Biblioteca Nacional. A maquete foi recusada pela comissão dos "amigos" do escritor e executada por conta do artista mais tarde. Construir objetos a partir do refugo, ponto de partida da escultura moderna, aproxima-o das tentativas atuais. Performático, no filme de Henri-Georges Clouzot, Mystère Picasso, executa uma ação artística sobre um vidro com tinta branca diante da câmara. Preocupado com o monopólio dos grandes centros artísticos, autoriza o deslocamento inédito de Guernica para a 2ª Bienal de São Paulo (1953/4), possibilitando ao público e aos artistas brasileiros o conhecimento direto da obra-prima ao vivo.


A Ascese do Arquétipo à Matriz em Klee


Paul Klee (1879-1940) diante do ágora onde a arte moderna congrega civilizações arcaicas e revolucionários estabelece as regras do jogo. Como julgar todo o passado que foi recalcado pelo estilo clássico, branco e ocidental? Um desenho, uma garatuja, uma iluminura deixa-se interpretar não pela representação, mas pelos elementos constitutivos: linha, tonalidade e cor. Os inventores do politicamente correto, os que creditam ao formalismo todas as infâmias do etnocentrismo são desarmados pelo artista-pedagogo, que deu à Bauhaus seu estatuto de universalidade. Não há desnível entre esboço e obra acabada, qualquer exercício aproxima o artista do centro da Criação, da matriz de onde emergem as produções naturais ou cultivadas. O cuidado, a minúcia e o zelo acompanham sua obra e ensino. Além de pintor, exerce a escrita — seus Diários são leitura obrigatória para quem quiser conhecer o século XX por dentro. Abrangem a época de 1898 a 1918, exatamente o período de busca, de procura de si mesmo na arte, narrando a hesitação entre a música e a pintura, a excelência nas artes gráficas, a descoberta da cor, a guerra e a perda de amigos. A partir daí, as aulas consagradas em textos fundamentais como os esboços pedagógicos tomam o lugar do confessional. A partir dos anos 30, com a chegada da doença, só a arte testemunha. Klee, até aqui cuidadoso da perenidade de sua pintura, dá uma guinada de 180º ao introduzir a juta como suporte, certamente um homólogo da doença de pele que sofria. Com esse suporte, a pintura adere com dificuldade aos intervalos da trama e da urdidura do tecido. A intensidade expressiva cresce atingindo um desespero sereno.


O Saber das Origens em Figari


Pedro Figari (1861-1938) só pelo registro civil antecede aos grandes marcos da arte moderna na medida em que sua produção é temporã, encontrando o estilo somente no início dos anos 20. A ousadia que caracteriza suas pinturas provém de um olhar crítico a tudo o que a arte ocidental produzira até então, deixando em reserva o fundo natal. Prefere o formato horizontal ao vertical e esse partido deixa de ser circunstancial na medida em que reflete a retilinearidade dos pampas. Trata-se de uma declaração de amor pelas extensões livres e desimpedidas das terras meridionais americanas. Muitos eventos se passam entre o solo e a lua, dispostos em frisa. O pincel de Figari capta fenômenos. Sua simplicidade crua restitui o presente eterno das personagens, a motricidade, a espontaneidade. Os assuntos de suas telas são cavaleiros, antigos escravos que descobrem a vida cosmopolita, fachadas banhadas de sol que só seriam reparadas com a mesma felicidade por Alfredo Volpi, árvores recém-libertas do art nouveau. O resultado atesta a grande qualidade da arte uruguaia desenvolvida com igual qualidade por Barradas e Torres-García. Cabe a Figari (talvez por sua grande afinidade com a cultura portenha) a descrição que Mário de Andrade faz em 1928 de Jorge Luis Borges: "Tanto nele como na figura de Don Segundo (personagem de Ricardo Güiraldes) não me parece que seja bem tristeza. É antes um silêncio essencial. O silêncio altivo das trepidações que supõe lá dentro da usina milhares de cavalos-força nascendo. Os versos dele que conheço são naturezas mortas naquele sentido tão lindo de "vida silenciosa" que lhe dão os alemães. Jorge Luis Borges tirou dos estudos uma fadiga contemplativa e condescendente. Então diz: "El tiempo está viviendome"..."


Uma Nova Antropologia para Wilfredo Lam


Picasso afirma a respeito das esculturas negras: "Não sei de onde vêm, não sei para que servem, mas compreendo muito bem o que o artista quis fazer". Wifredo Lam (1902-1982) sabe de onde vêm, para que servem e o que o artista quis fazer. Transformou o sonho formal dos cubistas, o delírio semântico dos surrealistas em realidade afro-americana, engendrando uma linhagem a que a XXIII Bienal Internacional de São Paulo presta reverência posto que o Brasil está inteiramente incluído na revelação do artista cubano. As esculturas africanas fascinaram o cubismo por sua frontalidade, pela sua visibilidade integral que implica a apropriação do olhar. Outras sonoridades habitam essas peças que a multisensorialidade de Lam soube receber e restituir. Seu percurso artístico é também iniciático. Estuda belas artes em Havana, aperfeiçoa-se em Madri, emigra a Paris como conseqüência direta de sua participação na guerra civil espanhola, descobre o cubismo, escapa dos nazistas embarcando no navio Paul-Lemerte rumo a Martinica, tendo como companheiros de viagem André Breton, Claude Lévi-Strauss, André Masson entre outros, regressa a Cuba e toma consciência da riqueza do transplante africano no Caribe. Sua obra torna-se a pedra de toque de uma nova antropologia, despertando a atenção de pesquisadores como Lydia Cabrera e Fernando Ortiz. Os ícones noturnos de suas telas dialogam com a vertente mais criativa da arte brasileira. Para a exposição foi solicitado ao crítico e historiador de arte cubano Gerardo Mosquera reunir obras que afiram o encontro na terra natal do artista consigo mesmo.



O Sagrado em Mestre Didi


Mestre Didi (1917), no registro civil Deoscóredes Maximiliano dos Santos, "sacerdote supremo do culto dos ancestrais Egun, zelador da casa de Ossanyin, Balé Xangô da casa dos Ashipá, como Asogbá da casa de Obaluaiyê, confirmado pela saudosa ialorixá Aninha foi preparado e incumbido da função e responsabilidade de continuar a herdada tradição da casa de Obaluaiyê, criando e sacralizando os emblemas rituais de seu culto", segundo palavras de sua esposa, a antropóloga Juana Elbein dos Santos, coordenadora da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil. Os objetos litúrgicos de Mestre Didi, sobretudo as árvores, contêm ao mesmo tempo o ímpeto de sua manifestação e a serenidade do entorno natural, detendo o enigma do existente. Alguns souberam vê-las assim como Brancusi, Miró e Klee. Mestre Didi foi convidado a participar de mostras de cunho antropológico além da que desafiava o etnocentrismo europeu (Magiciens de la terre, Centro Georges Pompidou e La Villette, Paris, 1989). Sua inclusão na XXIII Bienal vem de um processo que começa com Hélio Oiticica, na XXII, reconhecendo no artista dos Parangolés um intérprete da cultura afro-brasileira, passa por Arthur Bispo do Rosário, participante da 46ª Biennale de Venezia, autor de uma enciclopédia paginada pela simbiose do autor da tapeçaria de Bayeux com Jean-Michel Basquiat. Mestre Didi, outra etapa desse périplo, mostra em Salvador (Bahia) que a diáspora africana é um dos reservatórios de sentido da comunidade afro-brasileira. Sua obra executa o milagre, ou, traduzindo em linguagem corrente, o paradoxo de inovar e preservar o panteão nagô.


Da Procissão dos Símbolos às Formas em Rubem Valentim


Se Mestre Didi permanece ao lado das nascentes, Rubem Valentim (1922-1992) se situa após o rio ter sido adensado pelo grande afluente da arte ocidental. O artista lida com o machado duplo, o oxê de Xangô, o xaxará de Omolu, o ibiri de Nana, o abebê de Ogum, os símbolos de ferro de Ossanhe e de Ogum, o pachorô de Oxalá em textura lisa num espaço construtivista. Na mostra, está presente pelo grande painel dos orixás que construiu para o Ministério de Relações Exteriores, no Palácio dos Arcos, em Brasília. Todo branco como o Malévitch suprematista, em relevo, salientando os emblemas das entidades, constitui uma dedução das colunas que Oscar Niemeyer desenha para o Palácio do Planalto (sede do poder executivo), o edifício do Supremo Tribunal Federal e o Palácio da Alvorada (residência presidencial), índice da fluidez estrutural, patente em toda a produção do arquiteto. O painel dá a impressão de respaldar não apenas o edifício, mas toda a diplomacia brasileira, menos pela força tectônica que pela telúrica que emana de cada emblema. A obra de Valentim é uma procissão dos símbolos para as formas. O símbolo funciona como um operador dentro de um sistema enquanto que a forma surge a partir de si mesma, institui o próprio fundo. Disso resulta a observação pertinente do crítico de arte Paulo Herkenhoff que na construção de seu corpus divino Valentim evita a atmosfera de magia cara a Wifredo Lam e opta pela ordem e clareza, pela simetria como projeto ordenador do trânsito entre o homem e o mundo. Na pintura, o branco surge como um sorriso que descortina as trevas, às vezes organizando um malabarismo de luzes disciplinado por formas geométricas. Já o painel inteiramente luz medita sobre o cheio e o vazio.


A Arqui-escrita de Jean-Michel Basquiat


Jean-Michel Basquiat (1960-1988) teve uma passagem tão decisiva quanto efêmera na arte. Conjugou horizontes culturais que ainda não se haviam tocado como o potencial estético afro-americano, a experiência urbana e a arte radical de Cy Twombly. Músico, transpõe o ritmo rap à sua obra através da alternância entre forma e fundo à maneira de Broadway Boogie-Woogie de Mondrian. Vários artistas contemporâneos lidaram com as palavras seja mediante questões ou afirmações embaraçosas na caligrafia gorda de Ben Vauthier, seja mediante imperativos paradoxais em néon de Bruce Nauman. Basquiat promove uma arqui-escrita onde o significante não se casou ainda com o significado, carregando consigo gestos de menestrel ou de agrimensor. O próprio penteado do pintor prolonga seus traços. A necessidade ornamental não se contém apenas no tear grafitado. O excelente ensaio de Robert Farris Thompson, repertório de passeios, exposições, cafés da manhã em companhia de Jean-Michel, prenuncia a XXIII Bienal quando conta que, visitando o ateliê, "Gerardo Mosquera, um crítico de arte cubano, comparou-o a Wifredo Lam". O painel Savanarola tem o comprimento suficiente para abranger o mar das Caraíbas a ponto de trazer em sua extremidade ocidental a figura de Toussaint L'ouverture, herói da independência do Haiti, terra do severo Gérard Basquiat, pai e guardião da obra do artista.



Os Fantasmas Materiais de Louise Bourgeois


Louise Bourgeois (1911) tem a energia dos visionários, prolongando a estirpe de Goya e Munch. Elabora obra em torno do corpo e seus fantasmas, isto é, para os epistemólogos, prioriza os enunciados teóricos sobre os observacionais, o invisível sobre o visível, o imaterial sobre o material. A aranha é o animal emblemático do universo têxtil. Contudo Louise não se contenta como Vieira da Silva com a infinita elaboração de linhas, embora não perca de vista um só instante todas suas produções. O ponto mais evidente está nas células, núcleos germinativos, paradigma da não-separação, do aconchego, do apego. No lugar de engendramento, optou por mostrar suas roupas. Os vestidos compõem instantes reificados. Todos foram-lhe dados de presente. Dois habitantes ilustres freqüentam o ovo: Poiret e Chanel, um mundo passa entre os dois costureiros, como entre Chardin e David. Mesmo nas esculturas onde a unicidade é requerida Louise prolonga os fios de sua perspicácia. O que Jenny Holzer consegue com palavras, a artista franco-americana realiza com formas. A Mulher em Espiral ostenta uma evidência que impressionaria Rodin, além de espelhar o que R.D.Laing tenta exprimir em Laços (Knots).


As raízes da Paisagem segundo Cy Twombly


Cy Twombly (1929) é tão universal quanto as pinturas rupestres pré-históricas, fala uma língua feita apenas de raízes. Torna-se difícil sujeitá-lo a alguma nacionalidade. O semiólogo Roland Barthes enfatiza o aspecto caligráfico e sígnico de sua obra, mas não basta. Cy espreita a paisagem e a restitui nas mais inesperadas ressonâncias. O olho se desenvolve, a audição desatrofia, o corpo se arrepia pelo ruído de giz rangendo em quadro negro proveniente de suas ardósias. Permanece imune a qualquer condescendência mundana para flagrar a natureza se transformando em cultura. O fôlego original atravessa todos os veículos: escultura, desenho, pintura, fotografia. Em qualquer suporte, uiva o vento, balança a folhagem. Se os incautos duvidarem da desmaterialização como a proa da arte, excede a autoridade de Cy que se posiciona como um menir no campo dos possíveis, quando a arte reina indivisa, ao mesmo tempo téchne e poíesis. A materialidade do menir só existe para indicar o entorno, escancara a extensão e concentra o disperso. O expectador duvida de si mesmo: "onde termina a paisagem e eu começo? Será uma ilusão de todos os sentidos, um empréstimo exagerado de mim mesmo para esse pedaço de mundo?" Claridade ou noturno permanente desafiado apenas pelos traços, Twombly produz sua própria iluminação. A viagem da voz até a designação inspira essa obstinação. O artista se submeteu a um silêncio absoluto para desferir seu grito. Os séculos trabalharam muito para poder chegar a dizer tanto, assim como a geologia demorou várias eras para processar alguns minerais.


A Fabricação da Contemporaneidade por Andy Warhol


O historiador de arte Flavio Motta disse certa vez, acerca de um artista que desenhava para uma agência de publicidade, que "abandonara o emprego para poder trabalhar". Andy Warhol (1928-1987) não precisa denegar as tarefas de ilustrador, de paginador, de designer para desenvolver a obra. Sempre se mantém longe do tema, como um publicitário, e perto, como um artista. Promulgar imagens de latas de sopa, refrigerantes, atrizes, cadeiras elétricas, criminosos, desastres automobilísticos, nessa ordem, qualifica-o como o grande intérprete da civilização global contemporânea. Conhece como nenhum a porosidade do tecido que embebido de tinta produz a imagem sobre o suporte, as provas de cor, a impressão. Passa os ready-made de Marcel Duchamp às duas dimensões da tela, convertendo o próximo, o que está diante do nariz de todos, no inquietante, no oculto, na Carta Roubada. Os retratos de Warhol transformam os rostos em cosméticos e os torsos prolongam o desafio da frontalidade, do imediato, terreno que o aproxima de Basquiat. Os filmes que dirigiu ou produziu fazem de Warhol o Malinowski do continente norte-americano. Sua capacidade de captar o sentido da situação tem a fulguração de um acting out, do que só se revela circunstancialmente, por ato falho. O débito que a cultura mundial tem com a produção desse artista obriga a Fundação que leva seu nome em Pittsburg a se debruçar sobre a enorme tarefa de mostrar como a intuição pode chegar à razão ou como as premonições de Warhol se atualizam ou estão a caminho.



O Uso do Vazio em Gego


Gego (Gertrude Goldschmidt, 1912-1994) como Jesús Rafael Soto, Hélio Oiticica, Lygia Clark destina-se a mostrar que o construtivismo pode sobreviver à segunda geração de epígonos, os que engessaram a linha, o movimento, a cor transformando a arte em ortodoxia do design, a criação em sistema. Suas primeiras esculturas já traziam a promessa de vôo, mesmo dependendo do uso tradicional do pedestal. A linha para ser o caminho mais curto entre dois pontos precisa manter a força de propulsão, somente se aliar com outras capazes de multiplicar a força original. O desenhista tridimensional tem de alcançar a eficácia da carcaça de um zepelim, da caixa harmônica de um piano, do desenho de um céu estrelado ou dos fachos de luz na basílica de Santa Sophia em Istambul. Gego caminha metodicamente, inventaria o comportamento das linhas paralelas cantadas em alumínio, aço inoxidável e ferro, reflexo do sol e espelho do entorno quando veste os projetos arquitetônicos. Quando trabalha as verticais, já está promovida a mestre de capela. Provam-no os Jorros onde as varetas literalmente dançam as mínimas articulações, captando em arte o processo natural das precipitações. A glória de seu ofício acontece com as Reticulárias, ponto absoluto de sua ascese, galáxia na sala de exposições. Os arames de ferro executam uma malha não obsidente, lúdica. As articulações adquirem o teor de pontos que escandem o espaço como a declamação de um poema:
"Cuando llegue la luna llena
Iré a Santiago de Cuba".
Gego sabe que a desmaterialização da arte passa pelo desentulho de todas as fórmulas redundantes, que não basta ter freqüentado os bancos da Bauhaus ou da Escola Superior da Forma para alcançá-la. O vazio não é projeto.


Do Muralismo Mexicano ao Grupo Cobra em Wiig Hansen


Svend Wiig Hansen catalisa forças picturais descomunais: muralistas mexicanos e grupo Cobra. Dos muralistas, apanhou a ira dos elementos que descortinam os painéis de Siqueiros e Orozco. Do Cobra, especialmente de Asger Jorn, herda o teclado cromático de cores vivas, gritantes. No entanto fala uma linguagem própria ao apresentar seres em situação para usar a terminologia sartreana. Ao lado da apresentação do diretor do Museu Nacional de Arte Moderna de Copenhague, apresenta o ensaio do psiquiatra Ib Munkvad. Tem portanto o cuidado de desconstruir o discurso artístico por uma fala clínica. Suas telas são estações da angústia permeadas de metáforas desenganadas. Wiig Hansen procura tanto no volume quanto no plano formas que saciem seu apetite de autenticidade. Pertence à linhagem dos artistas messiânicos, dos que não têm medo da retórica das profecias. Não raro suas personagens gesticulam, tentam criar o contraponto em humor sombrio da "Dança" de Matisse. Participante da XVII Bienal Internacional de São Paulo (1983), pinta aos olhos do público um grande painel assim como os artistas grafiteiros norte-americanos Keith Haring e Kenny Sharf e os militantes do grupo Fluxus. Atualmente essas obras integram o acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.



Os Ex-votos de Arnulf Rainer


Arnulf Rainer (1929) exerce a contra-reforma na arte contemporânea. Não parte somente do grau zero da tela branca, mas de reproduções fotográficas sobre as quais faz explodir ou germinar sua pintura: o gestual sobreposto ao conceitual. Rainer descende dos artífices barrocos da Europa central, dos que tornaram a arte persuasiva a um público de devotos, promovendo convulsões paroxísticas nos corpos dos santos, vestindo-os com trajes preciosos ou andrajosos conforme a hagiografia, engastando olhos de vidro nos semblantes das figuras. O recobrimento de uma imagem estabelece uma relação indissolúvel entre o fotográfico e a intervenção. O mundo não passa de projeto mal resolvido e, portanto, sujeito a retificações. Exige revisão. Cada reprodução converte-se em ex-voto museológico, em bênção por atingir, através de rabiscos, a redenção do produto. Ao contrário dos artistas do movimento Fluxus, que se valem da banalidade do prosaico para corroer o ambiente sagrado de museus e galerias, Rainer transaciona com o extraordinário, o subjacente ao grafismo tal como personagens de Rembrandt, Goya, auto-retratos, crucifixos bizantinos, instantâneos de esculturas de Messerschmidt. A Áustria resistiu em sua história a assédios de povos vizinhos, mas culturalmente se abriu aos sitiantes. Rainer não fica "à espera dos bárbaros" (C.Cavafis) para reunir condições de compor a ode. Seu sismógrafo previu tempestades, mas atravessou incólume as intempéries.



A Dissolução da Matéria em Anish Kapoor


O pedido formulado a Anish Kapoor pela curadoria foi claro: criar o espaço que articula o visível em invisível na bienal da desmaterialização no final do milênio. Paradoxalmente, o artista indo-britânico só pôde ser exposto no andar térreo, em contrapartida a todos os demais convidados que se apresentam no terceiro, pois algumas obras pesam mais de duas toneladas excedendo a carga por metro quadrado tolerada nos pisos superiores. Perfura portas e janelas em materiais indevassáveis mediante o uso de pigmentos puros ou senão vinca como se fosse papel o ferro gusa, planta índices de natalidade em sólidos em forma de umbigo, polvilha azul em pedras anulando a concretude. O pensamento analítico ocidental, promotor da dualidade entre corpo e espírito, perde o pé diante de seus trabalhos. O predomínio da cor sobre a linha sempre incomodou o pequeno racionalismo. Se as pinturas em areia dos índios navajo não encontrassem a acolhida de Pollock, prosseguiriam à margem da consciência artística das metrópoles. A cor pura acena com o perigo da miragem. Os limites se esvaem, a ótica confina com o fantástico, as alucinações se revezam com as percepções. Quando se fala de vazio ou de nada, imediatamente se eleva uma formação reativa que impede a livre manifestação dos fenômenos. Kapoor devolve à arte o que é da arte: o ar, a terra, o fogo, a água. O lugar onde sua obra reside se torna marco por permitir a contemplação. Aqui a presença vigora.


A Linha Sem Fim de Tomie Ohtake


Tomie Ohtake (1913) com a mesma coragem demonstrada ao atravessar os oceanos e chegar ao Brasil nos anos trinta exibe nessa bienal uma mutação da mesma importância e de outra qualidade. Pintora abstrata consagrada, apresenta o resultado de sua concepção de espaço no campo tridimensional. Tomie já praticou escultura usando como apoio a terra e a água. Desta vez, tenta o ar e surpreende. Uma haste de ferro pintada com tinta epóxi branca de onze metros, suspensa, parte verticalmente, bifurca e reintegra-se antes de atingir o ápice. O crescimento de uma forma artística pede a legitimação do orgânico e o concurso da técnica. A marca quase imperceptível de uma conexão de tubos, ao invés de atentar para a fabricação, sublinha o impulso para o alto. Experimenta-se o mesmo arrebatamento quando da descoberta de um véu de noiva, de uma orquídea rara na paisagem. O ímpeto do objeto recebe a consagração no topo para, em seguida, manifestar-se como circularidade, equilíbrio das forças ascensionais e descensionais. A divisão em ductos durante o percurso não supõe o conflito, pelo contrário exprime a convivência harmoniosa de opostos provisórios. Talvez por este motivo, a elegância percorre o galbo lembrando o contorno de um vaso Song. A artista trabalhou em metalúrgica situada no bairro propulsor da industrialização de São Paulo, a Mooca, onde, por sinal, residiu no início de sua carreira artística. A sinergia estabelecida entre Tomie e os técnicos, especialmente mestre Paiva, transmite à peça o saber operário que ocorre sobretudo quando a obra chega à arte.


Qiu-Shi-Hua ou O Simulacro


O ocidente espera encontrar na arte do extremo oriente montanhas evanescentes, extensões oníricas, monges meditando. Resulta um choque cultural, pois, no lugar desses desejos, topa com imagens que tem mais a ver com a pop art, especialmente com Andy Warhol, conforme se pôde constatar na última bienal. O artista norte-americano executa, por sua vez, uma crítica caústica a Mao Tse-tung, trabalhando sua imagem cosmeticamente. Li Shan e Zhang Xiaogang tratam os costumes da revolução cultural com um distanciamento jogando seus protagonistas no ridículo. Qiu Shi-Hua traduz a pintura de paisagem exercida em tinta e papel, ponto alto da arte chinesa, em óleo. Do transplante nasce um sucedâneo curioso mais de Paul Signac que de Georges Seurat. O pintor pretende captar o momento de transição onde o visível ainda não qualificou como objetos. O curador Chang Tsong-Zung refere-se a Gerhard Richter. Contudo, no caso, seria apenas a produção figurativa do artista alemão. Qiu-Shi-Hua teria mais a ver com David Salle ou alguém que lida com o simulacro, participando movimento pós-moderno.

NOTA:
O autor rende tributo à exigência teórica de Anna Christina Aguilar, a sugestões editoriais de Teresa Ribeiro e a retificações de Agnaldo Farias.

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